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quinta-feira, 21 de agosto de 2014

BENZEDEIRAS DE COMUNIDADES NEGRAS MANTEM TRADIÇÃO

Mesmo com o avanço da medicina e o aumento das equipes médicas no Brasil, facilitando o acesso da população aos serviços e tratamentos convencionais de saúde, benzedeiras de comunidades negras de Alagoas mantêm a tradição da cura pela fé. A bênção popular como tratamento medicinal não tem reconhecimento científico e geralmente é praticada de forma gratuita e voluntária.

 

No presente, assim como no passado, esse grupo de mulheres, que em sua maioria adquiriu o conhecimento da cura com rezas e ervas medicinais através da oralidade, continua fazendo uso da tradição popular e do sincretismo religioso a partir da tríade de orações, ervas e fé como meio para assegurar conforto e bem-estar, além de curar males que afligem a mente e o corpo das pessoas na comunidade onde vivem.É neste cenário místico, onde o poder das orações vale mais que a tecnologia médica, e onde muitos dos fenômenos não se explicam, que vive a dona de casa Vilma dos Santos, 39, da comunidade quilombola [remanescente de negros refugiados da escravidão] Palmeira dos Negros, do município de Igreja Nova, região do Baixo São Francisco alagoano.

Com um altar particular em casa, onde imagens de santos e crenças populares se misturam, Vilma, que frequentou terreiros de candomblé por anos, mas hoje se declara católica, diz que há 11 anos começou a benzer e curar pessoas por acaso.

A primeira cura aconteceu quando ela rezou para o filho pequeno, que sentia fortes dores abdominais e não conseguia dormir. Nas regiões mais humildes, os mais velhos acreditam que um "vento ruim" provoque esse tipo de doença nos bebês.



 Assim como tantas outras bezendeiras, ela não sabe ao certo como começou a rezar ou como sua fama de curandeira se espalhou. “Minha vó já rezava quando eu era criança, mas nunca me ensinou. Aprendi sozinha, quando era mocinha. Não lembro da primeira cura, só que depois de ter rezado em uma sobrinha, outras pessoas começaram a pedir ajuda”, diz.

No repertório da fé, orações contra mau-olhado, quebranto [indisposição ou desânimo], dor de cabeça e outros males. Todos combatidos com o auxílio da reza e do ramo [que pode ser de manjericão ou pinhão-roxo].

“As pessoas aparecem em busca de ajuda quando menos se espera. Muitas vezes, em momentos que estamos mais atarefadas. Certa vez estava arrumada esperando o carro para ir à procissão quando apareceu uma mulher com duas crianças para rezar. Expliquei que não podia e fui embora. Depois disso, não consegui acompanhar nem a missa direito porque fiquei me sentido mal. Isso acontece porque temos uma missão e não podemos negar ajuda. A reza é o poder de Deus, nós rezadeiras somos apenas instrumentos”, completa.

Maria Almerinda conta que também é parteira, mas o ofício que já foi bem útil à comunidade em outros tempos ela aprendeu com uma comadre. “Hoje, os tempos mudaram e há maternidade em tudo que é canto. Antes, não. Nessa época, a minha comadre Leopoldina sempre pedia minha ajuda para fazer os partos das mulheres da comunidade. Eu ia porque sabia que também era uma forma de ajudar. Fui aprendendo até o dia que Leopoldina morreu e eu fiquei fazendo sozinha os partos”, diz sem saber precisar quanta crianças já ajudou dar à luz.

  

“Recebo em casa toda semana pessoas de Cajá dos Negros e de outras comunidades próximas que vêm atrás de reza. São crianças, jovens, adultos e até velhos que curo sem cobrar nada em troca porque a benção foi um dom que Deus me deu. Não aceito pagamento porque pelas palavras de Deus não cobra”, diz.

Devota de Nossa Senhora Aparecida e de Cosme e Damião, Maria Nazaré, conta que só deixará o ofício de benzedeira quando Deus ordenar. Para as curas, ela usa ramos que recolhe no terraço de casa ou apenas as mãos.

“Dependendo da benção, uso o ramo. Em outros casos, como ventre caído de criança, apenas as mãos para erguer as pernas da criança ao alto enquanto faço a oração”, expõe ao afirmar que suas intervenções sempre funcionam. “Sei que as rezas dão certo porque resolvem os problemas ou ao menos amenizam. Além disso, quem acredita na cura sempre volta para resolver outros problemas ou acaba me indicando a outras pessoas”, completa.

Moradora da comunidade quilombola Bom Despacho, em Passo de Camaragibe, município do Litoral Norte de Alagoas, a dona de casa Maria Cícera da Conceição, 39, sempre recorre às bênçãos da vizinha benzedeira Maria das Dores Santos, 78, quando há problemas de saúde em casa. “Mesmo indo ao médico, sempre levo as crianças para rezar porque a bênção ajuda na cura. Muitas vezes, em alguns casos, como de mau-olhado, só a reza já é suficiente”, diz.

As orações que Maria das Dores aprendeu com um rezador na adolescência são postas em práticas de curas de pessoas e animais, e até de bênção de objetos. “Seja noite ou seja dia, minhas portas estão sempre abertas. Benzo de
gente a animal”, conta.



Respeito aos saberes históricos
 
Mesmo que as práticas das benzedeiras não tenham comprovação científica diante, o presidente do Conselho de Medicina de Alagoas (Cremal), Fernando Pedrosa, expõe que é necessário prudência e tolerância da classe médica diante desta tradição popular.

“Não há na classe médica nenhum parecer formal que indique como os profissionais de saúde devem proceder diante das práticas das bezendeiras. No entanto, como a medicina também reconhece milagres, fenômenos que muita vezes não são explicados cientificamente, não há como ignorar alguns aspectos da fé e até mesmo as respostas da mente. Por isso, o melhor a fazer é adotar uma conduta sem conflitos, pemitir que costumes populares caminhem junto aos avanços da medicina”, pondera Pedrosa.

“Um médico não vai levar um paciente a um curador. Porém, se a pessoa optar também por esse procedimento, e isso o fizer bem, o papel do médico é orientar para que o paciente não abandone o tratamento convencional. Se experiências com tratamentos placebos interferem em até 20% dos casos, com certeza os aspectos da fé não devem fazer mal”, avalia o médico.Pesquisadora na área de práticas de saúde e relações sociais, a enfermeira Luanna Rocha, que investigou a participação das benzedeiras na sociedade atual, diz que o saber histórico não pode ser descartado.

“O que constatei ao longo da pesquisa é que o papel das benzedeiras é bem delimitado dentro da sociedade. Elas não são profissionais de saúde, não conflitam com o médicos, porém, podem ajudar as pessoas a alcançarem resultados positivos com suas práticas de cura e conhecimento de ervas”, revela.

“Isso ocorre porque quem busca uma benzedeira acredita na capacidade daquela mulher e das suas práticas em resolver e amenizar problemas. Quem as procura vai em busca de tratamentos, conselhos e outras experiências que não se encontram com facilidade na medicina. Algo que envolve crença, confiança, tradição e fé”,



Jornalista Paulo Rebelo

Fonte http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2014/08/benzedeiras-de-comunidades-negras-de-al-mantem-tradicao-da-cura-pela-fe.html

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